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  • Foto do escritorJúlia Orige

Em Portugal não há xenofobia



morar em lisboa

Na esquina da rua onde eu moro tem um indiano. Na rua de baixo há outro, três quadras ao lado, passando pela praça, tem um chinês. Lisboa está cheia de chineses e indianos. Bem, os chineses são mesmo da china. Os indianos, não tenho bem a certeza, acho que só parecem indianos, os que eu perguntei vinham de países vizinhos. Aqui é muito simples. Se você diz que vai a um indiano, é claro: é um mini-mercado. Se vai a um chinês, há duas opções: loja de cacareco ou restaurante.

Sempre que eu desço para comprar alguma coisa algum dos moços que trabalha ali no mercadinho faz alguma brincadeira muito sem graça comigo. Uma tentativa de aproximação falhada. O meu receio ali tem muito mais a ver com o fato de serem homens e darem em cima de mim do que qualquer outra coisa, mesmo assim, há uma barreira. Não serei eu a transpô-la, a intenção deles comigo é bastante clara.

Eles abrem cedo e fecham depois da meia noite. São uma função do bairro, não mais que isso. Ninguém interage com eles, a maioria nem ri das piadas sem graça que tentam fazer. Uma pena, eles tentam.

Não conheço ninguém que tenha um amigo indiano. Ouvi falar de uma amiga que estudou com uma chinesa. Já os angolanos não, eles estão em toda parte, e ainda bem. Mesmo assim ainda não diria "completamente integrados".

Esses dias um amigo levantou a questão de "por que todos os mini mercados de Lisboa são de indianos?", se aproximando do questionamento: estarão eles ocupando um lugar que seria dos portugueses? Nem digo que seja inválido, Portugal não tem a melhor economia, quer seja para quem nasceu aqui ou para quem vem de fora. Mas a pergunta que me salta aos olhos é: por que eles não estão em mais nenhum lugar? Será que eles conseguem empregos em outro setor? Ou mesmo nas redes de grandes mercados?

A língua é uma grande barreira, por certo. Nisso os brasileiros e angolanos tem sua vantagem.

Apesar de que para a maioria dos portugueses, não falamos português. Falamos brasileiro ou angolano. Como se, ignorando toda a história exploratória e sangrenta, não quisessem ter nada a ver conosco.

Já conheci vários brasileiros por aqui que falam com um sotaque que deve ser localizado no meio do Atlântico. Acho que é normal misturar o jeito de falar quando se muda de país, ou mesmo de região. Mas eu sinto que é mais que isso. Mais que uma reação natural de osmose cultural. É a síndrome de vira-lata que se deixa instalar e dobrar. A aceitação do sotaque brasileiro como uma parte "errada" da língua portuguesa. Porque, claro, o português é domínio de Portugal e a verdade da gramática se subordina a isso.

Eu tenho muitos complexos, mas ainda bem que esse eu já superei. É especialmente engraçado falar com esses brasileiros com sotaque aportuguesado, porque eles, falando comigo, vão voltando a falar "brasileiro" aos poucos e é como se lutassem contra isso. É espantoso notar a diferença de jeito de falar ao se dirigir a mim ou a um português, as vezes imediatamente.

No Brasil há mais, claro, mas aqui há muitos brasileiros que odeiam ser brasileiros. Para eles, tudo que é bom vem de fora, tudo que é certo não é por certo do Brasil. Do nosso paraíso tropical só pode sair corrupção, desorganização e (para não ser injusta) comida boa. Ah, esqueci da putaria. Não há maneira mais bonita de dizer isso.

Isso não é mais que uma reação humana de não ver para além do seu próprio umbigo. O Brasil é muito grande e eu não sei de que canto eles saíram, mas certamente não foi do meu. O Brasil é muitos. E o meu é sensacional. Eu não estou aqui porque odeio o Brasil, longe disso.

Mas, voltando ao principal, eu estou aqui numa posição extremamente privilegiada como imigrante. Sou branca, falo português e já vim com uma "prova" de que valho algo, vulgo, uma vaga numa universidade boa. Meus problemas se relacionam mais com o choque cultural que é natural a qualquer um, ao machismo e o descredito generalizado com minha nacionalidade. Não estou em posição de reclamar, mesmo que esteja.

Ouvi do pai de uma das minhas amigas que todos os brasileiros que ele conhecia eram burros e que talvez, e só talvez, eu fosse diferente. Como se eu tivesse que provar. Ouvi também que portugueses não são pretos e por isso seria errado deixar que imigrantes negros viessem para cá, porque teriam seus filhos e esses filhos seriam portugueses, como que distorcidos.

Já ouvi muitas vezes também a pergunta singular "ainda existem índios no Brasil?". Acho essa especialmente peculiar. Também não podem crer que no Brasil haja frio. Quando eu fiz minha tatuagem aqui, em um estúdio muito bom, com um tatuador muito competente inclusive, ele fez uma piadinha maravilhosa. Perguntou o que eu fazia, disse que eu estudava jornalismo. Então ele achou por bem dizer que "esse campo no Brasil é ótimo, pra jornalismo criminal".

Já ouvi também vezes sem conta que no Brasil a faculdade é mais fácil, que dão notas sem merecer e que não ensinam bem. Não poderia discordar mais. Porém, esse é a minha experiência pessoal e eu tenho certeza de que vai ter sempre alguém pra me contradizer. O que posso afirmar categoricamente é que no Brasil há sim escolas boas, faculdades melhores que as daqui e que as notas são merecidas. Tem exceções, é claro, ou talvez a exceção seja o bom. Não posso dizer. Mas existem. E eu me recuso a acreditar que sou inferior em alguma coisa porque nasci abaixo da linha do Equador.

*Esse texto não tem pretensão de ser jornalístico, é baseado somente na minha experiência morando em Portugal*


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